2 de mar. de 2009
Brasília, 20 de fevereiro de 2009
Começou a hora do show*
Em 2000, o cineasta afro-americano Spike Lee finalizou um dos seus filmes mais duros, A Hora do Show, em que satiriza a indústria cultural americana, através da crítica à representação dos negros num programa de TV. Infelizmente, a situação do Carnaval baiano permite analogia entre o branco pintado de negro em O cantor de jazz, filme citado por Lee em A Hora do Show, e os cantores e cantoras que, a partir da mimetização do imaginário, da fala, da criatividade visual, musical e rítmica de artistas negros baianos, se inserem na mídia e no mercado pintados de negros e negras da Bahia.
A renovação, atualização e releitura do Carnaval baiano apóiam-se fortemente na africanização da festa. A expressão visual, as roupas usadas no Carnaval e no cotidiano, a moda da rua, as gírias, as expressões artístico-culturais, a inventividade do negro e da negra são utilizados pelo mercado de novidades carnavalescas.
A reafricanização do Carnaval baiano se registra a partir dos blocos de índio, nos anos 70. É preciso lembrar que houve momentos de perseguição dos poderes públicos aos Apaches do Tororó e aos Comanches. A criação e resistência dos blocos de índios foram fundamentais para a etapa seguinte.
Em 1974, chega à avenida o Ilê Aiyê, depois vêm o afoxé Badauê, o Olodum, o Malê Debalê e, ao longo do tempo, em outras comunidades marcadamente negras e periféricas, vimos surgir Ara Ketu, Timbalada, Didá.
Estas e outras entidades, seja nas estampas, alegorias, repertórios ou musicalidade, bebem diretamente da fonte da África baiana, África recriada, imaginada, atualizada a partir de referências da juventude negra e do seu cotidiano nas periferias.
O fenômeno do enegrecimento do Carnaval encontra-se, hoje, noutro patamar.
De forma semelhante a outras manifestações originalmente referenciadas na cultura negra, o processo de inserção no mercado descaracteriza os produtos a partir da ressignificação e apropriação destas expressões artísticas por artistas e instituições não-negros, inclusive as públicas.
O Carnaval da Bahia pinta o rosto de negro, mas os espaços mais cobiçados e lucrativos, a exposição midiática privilegiada, o inegável resultado financeiro fica nas mãos e bolsos brancos ou quasebrancos.
A elite do mercado do Carnaval agiu rápida e lucrativamente ao explorar e incorporar o acervo negro baiano. A incorporação virou símbolo da Bahia e da propagada baianidade que seduz o Brasil e o mundo, através, principalmente, dos pintados de negro, uma mercadoria de forte receptividade, consumida com alegria pela indústria cultural e de turismo. Ao mesmo tempo, a maioria das mulheres e jovens negros cumpre papéis subalternizados na festa: comércio informal, cordas, coleta de latinhas e pets, refugos dos que pagam para usufruir da hora do show.
Em alguns casos, ainda, é preciso embranquecer o artista negro para ter sucesso. É preciso adotar práticas da elite do Carnaval baiano para aparecer: mudam-se os formatos dos shows, os locais dos ensaios, acrescentam-se elementos que representem diversidade racial, elitiza-se o produto para que ele seja melhor aceito pela mídia e pelo mercado. Alguns, que não aderem às práticas do Carnaval branco, são as exceções tão necessárias para tornar a festa ainda mais bonita e aparentemente legitimamente afrobaiana.
O desafio para os artistas negros e negras da Bahia é duplo: o primeiro, como todo artista, é estar atento e antenado para a partir da arte colocar o povo em suas obras; o segundo, mais cruel e oneroso, é ver sua originalidade reverter em ganhos para outros grupos, outras pessoas, ver sua obra obter espaços a partir de rostos pintados de negro.
Não é uma questão de cópia ou plágio.
É algo que escapa da legislação de direitos autorais, é mimetização e ressignificação de um patrimônio imaterial, ao mesmo tempo individual e coletivo.
Embora não haja ilegalidade nessas práticas de apropriação, há a imoralidade, que produz a deslegitimação dos processos de organização e expressão cultural da juventude negra da Bahia.
Para nós, que vimos nascer, crescer e sobreviver a pulsante originalidade desta recriação da África na Bahia, nos resta usar a voz. A pergunta é: quem são as vítimas na hora do show ?
*Por Luiz Alberto - Deputado Federal (PT/BA), ex-secretário de Promoção da Igualdade do Estado da Bahia
Fonte: Jornal A Tarde / Opinião - Página 3 - Publicado em 20 de fevereiro de 2009
Mais informações:
Assessoria - Deputado Federal Luiz Alberto (PT/BA)Daniela Luciana (DRT/BA 1998) / 61 8179-9316
Começou a hora do show*
Em 2000, o cineasta afro-americano Spike Lee finalizou um dos seus filmes mais duros, A Hora do Show, em que satiriza a indústria cultural americana, através da crítica à representação dos negros num programa de TV. Infelizmente, a situação do Carnaval baiano permite analogia entre o branco pintado de negro em O cantor de jazz, filme citado por Lee em A Hora do Show, e os cantores e cantoras que, a partir da mimetização do imaginário, da fala, da criatividade visual, musical e rítmica de artistas negros baianos, se inserem na mídia e no mercado pintados de negros e negras da Bahia.
A renovação, atualização e releitura do Carnaval baiano apóiam-se fortemente na africanização da festa. A expressão visual, as roupas usadas no Carnaval e no cotidiano, a moda da rua, as gírias, as expressões artístico-culturais, a inventividade do negro e da negra são utilizados pelo mercado de novidades carnavalescas.
A reafricanização do Carnaval baiano se registra a partir dos blocos de índio, nos anos 70. É preciso lembrar que houve momentos de perseguição dos poderes públicos aos Apaches do Tororó e aos Comanches. A criação e resistência dos blocos de índios foram fundamentais para a etapa seguinte.
Em 1974, chega à avenida o Ilê Aiyê, depois vêm o afoxé Badauê, o Olodum, o Malê Debalê e, ao longo do tempo, em outras comunidades marcadamente negras e periféricas, vimos surgir Ara Ketu, Timbalada, Didá.
Estas e outras entidades, seja nas estampas, alegorias, repertórios ou musicalidade, bebem diretamente da fonte da África baiana, África recriada, imaginada, atualizada a partir de referências da juventude negra e do seu cotidiano nas periferias.
O fenômeno do enegrecimento do Carnaval encontra-se, hoje, noutro patamar.
De forma semelhante a outras manifestações originalmente referenciadas na cultura negra, o processo de inserção no mercado descaracteriza os produtos a partir da ressignificação e apropriação destas expressões artísticas por artistas e instituições não-negros, inclusive as públicas.
O Carnaval da Bahia pinta o rosto de negro, mas os espaços mais cobiçados e lucrativos, a exposição midiática privilegiada, o inegável resultado financeiro fica nas mãos e bolsos brancos ou quasebrancos.
A elite do mercado do Carnaval agiu rápida e lucrativamente ao explorar e incorporar o acervo negro baiano. A incorporação virou símbolo da Bahia e da propagada baianidade que seduz o Brasil e o mundo, através, principalmente, dos pintados de negro, uma mercadoria de forte receptividade, consumida com alegria pela indústria cultural e de turismo. Ao mesmo tempo, a maioria das mulheres e jovens negros cumpre papéis subalternizados na festa: comércio informal, cordas, coleta de latinhas e pets, refugos dos que pagam para usufruir da hora do show.
Em alguns casos, ainda, é preciso embranquecer o artista negro para ter sucesso. É preciso adotar práticas da elite do Carnaval baiano para aparecer: mudam-se os formatos dos shows, os locais dos ensaios, acrescentam-se elementos que representem diversidade racial, elitiza-se o produto para que ele seja melhor aceito pela mídia e pelo mercado. Alguns, que não aderem às práticas do Carnaval branco, são as exceções tão necessárias para tornar a festa ainda mais bonita e aparentemente legitimamente afrobaiana.
O desafio para os artistas negros e negras da Bahia é duplo: o primeiro, como todo artista, é estar atento e antenado para a partir da arte colocar o povo em suas obras; o segundo, mais cruel e oneroso, é ver sua originalidade reverter em ganhos para outros grupos, outras pessoas, ver sua obra obter espaços a partir de rostos pintados de negro.
Não é uma questão de cópia ou plágio.
É algo que escapa da legislação de direitos autorais, é mimetização e ressignificação de um patrimônio imaterial, ao mesmo tempo individual e coletivo.
Embora não haja ilegalidade nessas práticas de apropriação, há a imoralidade, que produz a deslegitimação dos processos de organização e expressão cultural da juventude negra da Bahia.
Para nós, que vimos nascer, crescer e sobreviver a pulsante originalidade desta recriação da África na Bahia, nos resta usar a voz. A pergunta é: quem são as vítimas na hora do show ?
*Por Luiz Alberto - Deputado Federal (PT/BA), ex-secretário de Promoção da Igualdade do Estado da Bahia
Fonte: Jornal A Tarde / Opinião - Página 3 - Publicado em 20 de fevereiro de 2009
Mais informações:
Assessoria - Deputado Federal Luiz Alberto (PT/BA)Daniela Luciana (DRT/BA 1998) / 61 8179-9316
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