3 de fev. de 2010

'A senhora é deputada?' - Um caso de discriminação racial‏

Negra e militante de movimentos sociais, a deputada federal Janete Pietá (PT-SP) foi vítima de discriminação racial por parte de uma funcionária do cerimonial da Presidência da República, na terça-feira 26, em Brasília, durante o lançamento dos programas Bolsa Copa e Bolsa Olímpica, pelo presidente Lula. A deputada foi barrada ao tentar entrar no evento, no auditório do Ministério da Justiça. Ela pegou a fila para retirar o pin que lhe daria acesso ao espaço destinado aos parlamentares e, ao se apresentar, a funcionária a olhou de cima a baixo e exclamou: “A senhora, deputada??? !!!... Eu nunca lhe vi nos eventos presidenciais”.

Pietá ainda comentou, calmamente, que a representante do cerimonial não era obrigada a conhecer os 513 deputados do Congresso, mas deveria, ao menos, saber identificar o seu broche de parlamentar utilizado na lapela. Mas não adiantou. Fundadora do PT, a deputada disse ter sentido dor e humilhação. “Como uma mulher afrodescendente, que ousa fazer um penteado afro, de tranças rasteiras, que não chega arrogante, pode ser deputada? Está mentindo, então!”, protesta Pietá.

A deputada procurou o responsável pelo cerimonial. “De longe, vi a funcionária me olhando com desprezo”, afirmou. Segundo o cerimonial, a funcionária, não identificada, era contratada por uma empresa terceirizada e seria demitida. Pietá intercedeu: “Não precisa ser demitida. Quero que ela aprenda a respeitar as pessoas e não discriminar ninguém”.


Leia, abaixo, o artigo que a deputada escreveu para o site de CartaCapital:

Invisibilidade secular

Chove em Brasília e na minha face correm lágrimas. Não há consolo para julgamento sumário. Saí com vida, porém a dor, a humilhação, a indignação cidadã me corroem a alma. Em pleno século XXI sinto o açoite da chibata. As diferenças que ferem a cidadania. O milenar olhar de superioridade e de indicação da porta da cozinha ou da senzala. Como uma mulher afrodescendente, que ousa fazer um penteado afro, de tranças rasteiras, que não chega arrogante, olhando de cima, ostentando brancura, ouro, e cercada de um séquito de assessores, é deputada federal!?.. Não pode ser deputada. Está mentindo! Não lhe permito o acesso e com olhar soberbo a humilho frente à platéia que espera a vez de passar pela revista para acessar o evento com a presença do presidente da República. Tenho poder de julgar, esnobar e colocá-la no seu devido lugar. Tenho o poder de poder oprimir deste lugar em que estou, vestida e investida de autoridade.


Cumpri todas as formalidades de quem acessa ao evento. Entrei na fila, esperei minha vez para buscar meu pin de acesso às cadeiras de deputados(as). A única regalia para nós deputadas é não passar pela
revista da bolsa e sabe-se como é uma bolsa de mulher... Aliás, hoje quando vou ao Banco também deixo minha bolsa nos armários que ficam do lado de fora. É sempre catastrófico, chaves, celulares, moedas, sombrinha... e a porta eletrônica a trancar e apitar. Eis a mulher que me olhou de cima e me ouviu dizer as palavras inacreditáveis, em tom baixo quase coloquial: “Sou deputada federal”. Ao que ela me interpelou severa: “A senhora, deputada!!!???... Eu nunca lhe vi nos eventos presidenciais!” Calmamente respondi: “A senhora não é obrigada a conhecer os 513 deputados e deputadas, mas como pessoa do cerimonial deveria olhar para minha lapela e reconhecer meu broche de deputada, cartão de visitas aqui e em qualquer ministério”. Ao que me respondeu com grande autoridade: “Sou do cerimonial da presidência”. Ao que respondi: “Vou procurar o responsável pelo cerimonial”. Fui, e ela de longe me olhava com desprezo. Depois descobri que era terceirizada, o que é secundário pelo que o feito revela.

Sei que hoje uma parlamentar que zela por ser séria tem que enfrentar desprezo e zombarias por causa dos que não se comportam com ética, e porque em regra tudo acaba em pizza (ou panetone). É doloroso, porém, esse sentimento generalizado contra os políticos, uma vez que boa parte dos que se elegem são pessoas sérias. Mas a secular discriminação racial e social contra aqueles que foram oprimidos e seus descendentes, ainda mais por quem tem a tarefa de recepcionar na República, é muito mais dolorosa. É intolerável. É de chorar, como chorei copiosamente depois.

A cerimônia, com a presença do presidente Lula, governador e prefeito do Rio, ministros da Justiça, Esporte, Turismo e da Casa Civil, era para apresentar mais um passo num novo paradigma de segurança pública, um avanço para a categoria policial militar, que através da Bolsa Copa e da Bolsa Olímpica trará capacitação e aumento do soldo dos profissionais de segurança e bombeiros envolvidos nas operações de
segurança nas sedes dos dois eventos esportivos. Certamente fará parte da capacitação dos agentes de segurança destacar a chaga da discriminação racial no Brasil e os caminhos para evitá-la.

Nós, negros e negras do Brasil, temos o direito à visibilidade e ao respeito em qualquer lugar. Chega de julgamentos sumários, negados quando se exerce o direito de defesa, mas reiterados pelo silencioso e frio olhar seguinte. Chega de ter que fazer sincretismos para sermos aceitos pela casa grande. Chega de invisibilidade forçada.

Acreditem, somos menos de 5% de deputados e deputadas federais negros. É hora de o Senado aprovar o Estatuto da Igualdade Racial, que teve que ser muito atenuado para passar na Câmara. É hora de uma nova educação para aplicar o princípio constitucional de que todos somos iguais. É hora de não se conformar, de protestar em cada caso, num mutirão prático-educativo assumido por dezenas de milhões de negros e negras. Lembrar que assim como lugar de operário também é na presidência da República, nos ministérios, no Parlamento, o lugar do negro e da negra é em qualquer lugar de poder: na política, na
administração, no judiciário... A maioria da nação, negros e negras, quer a visibilidade a que tem direito. E, por suposto, quer respeito.

Janete Rocha Pietá


Mulher e militante negra, política fundadora do PT e atualmente deputada federal pelo PT-SP


Marcio Alexandre M. Gualberto

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