30 de mai. de 2011

Sobre o Projeto de Lei que regulamenta as Lan Houses - 2

Entrevista

Muitos fatores contribuíram para a abertura das portas das lan houses ao mundo da inclusão digital. Em especial, a militância de organizações da sociedade civil como a Associação Brasileira de Centros de Inclusão 
(Abcid), presidida pelo ativista Mário Brandão. Um dos principais articuladores do projeto de lei para regulamentação das lans, que em abril foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado para o Senado, Brandão fala das novas vocações dos centros privados de acesso coletivo e defende o papel social desses estabelecimentos. Por isso, reivindica: “Assim como o governo fornece mão de obra para a indústria, para o turismo etc., nós também deveríamos ser contemplados por essas políticas públicas de qualificação profissional”.




Estigmatizadas como casas de jogos e diversão, hoje as lan houses começam a ser vistas como centros de inclusão digital. A que se deve essa mudança?

Mário Brandão – Não é que as lan houses estão mudando. É que o público das lans amadureceu e tem outras necessidades. A lan house começou em 1998, 2000, com a primeira onda de games. Depois, o garoto que frequentava a lan para jogar passou a querer namorar, falar com os amigos, encontrar as amizades. Ou seja, começou a querer comunicação. Então explodiu, primeiro ICQ, bate papo do UOL, depois MSN e Orkut. Conforme esse usuário cresce, surgem outras necessidades: estudar, pesquisar, trabalhar... às vezes é um cara que vai casar, vai à lan house procurar apartamento, terreno pra comprar. E as lans vão se posicionando para atender a essas demandas. Mas também tem os usuários entrantes, adolescentes que querem jogar. Por isso, a lan house de jogo ainda existe e vai continuar existindo. Só que agora existem outras coisas também.

Vamos à extensa e interessante entrevista?

Falta informação sobre o potencial das lans nas estratégias de democratização do acesso à internet ou ainda há muito preconceito?


Brandão – Havia muito preconceito porque as lans são eminentemente espaços de acesso de público de baixa renda. Mas a lan house ficou conhecida como um lugar onde a galera queria ir pra jogar e matar aula porque foi esse o início. A gente herdou o vácuo do que era o fliperama. Só que o computador e a internet são bem diferentes de uma máquina de fliperama em que você ou joga, ou joga. A internet terá o uso que você fizer dela. Se você entra no telecentro mais conceituado do Brasil, abre o Google e digita uma palavra, o resultado que vai aparecer na tela é igual ao resultado que vai aparecer na tela de uma lan house de jogo. Então, se você quiser chegar em uma lan house de serviço e estudar, você pode. Assim como você pode fazer comunicação na lan house de jogos. Embora a lan house tenha sua vocação, quem diz o que quer fazer nesses espaços é o usuário. Por muito tempo as pessoas associaram a internet a um ambiente pouco colaborativo, pouco social, sempre viram a internet pelo lado da criminalização, pelo potencial de danos, de intercâmbio de fotos de pornografia. Um espaço potencializador de más condutas. Hoje já se tem a percepção de que é um espaço potencializador de condutas – más ou boas. Se o cara quiser fazer coisas boas, a lan house vai potencializar também.



Que tipo de atividades e conteúdos são oferecidos pelas lans?

Brandão – Lan house é um negócio plural. Olha só. Aqui no meu bairro, tem uma lan house escura, com neon nas paredes, você anda e não consegue enxergar seu pé. É um clima de imersão, onde você “entra no computador” e a ideia é que nada te distraia. Esse é um ambiente muito propício para quem quer jogar ou precisa fazer alguma coisa que exige alta concentração. A cem metros, tem outra lan, que parece uma farmácia, de tão iluminada. No desktop, não tem nenhum jogo. Mas tem sites da prefeitura, da polícia civil, de serviços públicos, de banco. É um lugar voltado para negócios, um centro de serviços de escritório, como impressão, recarga de cartucho, copiadora. Enfim, serviços para quem não tem computador, ou para quem tem mas não sabe usar. Duzentos metros do outro lado, tem outra lan, que funciona em uma locadora de vídeo. O dono colocou cinco ou seis máquinas, o pessoal pega o filme e assiste no computador. Mas esse cara também gosta muito de história em quadrinhos. Aí ele digitalizou vários gibis antigos para o pessoal consultar, ler, “folhear” na tela. O lugar se tornou um centro de cultura voltado para cinema, HQ, entre outras coisas. Também pertinho tem uma lan com perfil de comunicação, tecnologia para chamadas de voz pela internet, webcam nas máquinas. As pessoas utilizam essa estrutura para fazer treinamento, capacitação para call center, para revendedores. Outros vão lá fazer conferência de trabalho. Aqui na minha lan, a X-Rio, o forte é a educação, o ensino a distância. Nosso maior movimento é à noite, porque o pessoal sai do trabalho e vem pra cá estudar, pesquisar. Então, são lan houses diferentes, cada uma tem seu modelo, e nenhuma concorre diretamente com a outra.



Como espaços privados, que comercializam serviços, as lan houses podem contribuir para a inclusão digital no país?

Brandão – Sim, e essa é uma função importante das lans. Seria ótimo que todos pudessem ter um computador em casa. Mas veja só: vamos fazer um cálculo com base em um indicador chamado Custo Total de Propriedade, que é o quanto custa ter ou manter a posse de determinado bem – no caso, o computador com o acesso à internet. Um computador em uma residência significa uma despesa mensal em torno de R$ 250. São de R$ 50 a R$ 100 da prestação da máquina, mais o custo de depreciação nos dois ou três anos de vida útil da máquina, mais as despesas de energia, conexão, provedor de internet, manutenção do equipamento e até a formação para manipular o equipamento independente de ajuda. E esse custo mensal pode chegar a R$ 400, em camadas sociais um pouco mais altas. Esse custo é para uma média de navegação de 40 horas, 60 horas por mês. Em uma lan house, o mesmo tempo de navegação sai por R$ 60, R$ 70. Para uma pessoa que tem uma renda de quatro salários mínimos para cima, esse custo de propriedade é razoável, ela consegue manter a máquina. Mas, para quem ganha de um a dois salários mínimos, não dá. Esse dinheiro representa a cesta básica, o crédito no celular. Isso faz com que a lan house seja uma escolha racional dessa população de baixa renda.



Mas a inclusão vai além do acesso. O que as lans houses precisam para para oferecer conexões e conteúdos para trabalho, estudo, serviços públicos?

Brandão – Alguns erros foram cometidos nos últimos anos, como o de alijar as lans das políticas públicas para qualificar o acesso à internet. Você conhece um centro de formação de monitor para lan house? Os programas de formação de governos são para telecentros gratuitos e não dão abertura para que as lans participem, mesmo que queiram pagar por isso. Existem, no país, cerca de 250 mil pessoas trabalhando em cerca de 100 mil lan houses (projeção da Abcid, em 2010, a partir de dados do Nic.BR). Assim como o governo fornece mão de obra para a indústria, para o turismo etc., nós também deveríamos ser contemplados por essas políticas públicas de qualificação profissional. Nós somos um segmento de mercado. E está errado pensar que esse investimento público vai beneficiar um segmento privado, o das lans. A gente tem que pensar o seguinte: como está sendo a cultura de navegação de 30 milhões de pessoas que acessam internet via lan houses no Brasil? A ausência do governo faz com que a gente tenha uma pobre qualificação do acesso dentro das comunidades de baixa renda, que são os territórios predominantes das lans.



O projeto de regulamentação de lan houses que está no Senado atende às expectativas do setor?

Brandão – Esse projeto é uma luta nossa desde 2007. Em 2006, a gente começou as ações da Associação e eu sai atrás dos deputados do Rio de Janeiro para dizer a eles que o tratamento legislativo dado às lans não afeta só as lans. Cria dificuldades a milhões de pessoas, para as quais é mais econômico acessar a internet via lan house. As pessoas precisam ter o direito a essa opção. A internet, em vários lugares do mundo, hoje já é considerada direito fundamental. Aqui, lan house tem de estar a tantos quilômetros da escola, estudante não pode entrar em lan com uniforme, menor precisa de autorização dos pais reconhecida em cartório... Todas essas dificuldades, em outros países, seriam desconstruídas por princípios constitucionais. Mas, no Brasil, aconteceu o contrário. Surgiram leis municipais severas, depois estaduais. E a gente começou a ver que isso não dificultava a operação das lans, em si. Dificultava um tipo de lan que, no meu ponto de vista, é uma das mais fundamentais. Por exemplo: aqui no Rio de Janeiro, você é obrigado a fazer matrícula escolar pela internet. Mas poucos estudantes de escola pública têm acesso residencial. Na época de matrícula, tem fila aqui, de pai e mãe para matricular o filho na escola. Aí você se pergunta: é justo que essas pessoas que precisam ter acesso a esses bens civilizatórios, inclusive a educação, tenham tanta restrição? Se o garoto está de uniforme escolar, não entra. E a maior parte das legislações é assim: não pode entrar de uniforme e ponto. Quer dizer, fora do turno dele de escola, no final de semana... não pode. Em São Paulo, Paraná, isso talvez seja considerável. Mas no Norte, Nordeste, muitos meninos e meninas não têm roupas. Eles andam com a roupa da escola, mesmo no final de semana. É a roupa que eles têm. Esse tipo de restrição, portanto, não cria dificuldade só para a lan house, cria para o garoto que saiu da escola e quer ir direto fazer uma pesquisa. O impacto é sobre a inclusão digital do país.



Como você avalia as emendas aprovadas pela Câmara de Deputados, que fizeram restrições à versão inicial?

Brandão – Então, foram aprovadas duas emendas problemáticas. Uma é da deputada Mara Gabrilli (PSDB-SP), sobre acessibilidade. A outra, do cadastro obrigatório, é do deputado Sandro Alex (PPS-PR). A questão da acessibilidade não está definida, foi para regulação posterior. Pode se referir à estrutura física ou aos
hardwares e softwares. Se fosse acessibilidade de 
hardware e software, eu aprovaria plenamente. Mas o problema do acesso físico é mais complexo. Muitas lans funcionam no segundo andar de um prédio. Como aqui. Não acho justo que eu não possa existir institucionalmente pela minha incapacidade de oferecer acesso a um cadeirante. Veja, eu não sou contra assistividade. Até coloquei aqui na minha lan programas para deficientes visuais, que depois não vingaram por falta de demanda. Assim como também nunca veio aqui um cadeirante que ficasse sem subir. A gente juntaria duas ou três pessoas que ajudariam a trazê-lo para cima. Mas essa emenda é muito radical, inviabiliza muitas iniciativas. Não concordo que, para benefício da minoria, se deixe de atender à maioria. Você tem ideia de quantas lans houses existem nas favelas, sem a menor condição de ter um acesso desse tipo? É preciso levar em conta as diferenças. Uma coisa é um supermercado, um shopping, que têm estrutura necessária para colocar um elevador, uma escada rolante... isso deve representar 0,01% do faturamento de um estabelecimento desse porte. Outra, é uma lan house na periferia, em que o faturamento é de R$ 3 mil, R$ 4 mil por mês. A segunda emenda complicada é a que estabelece a obrigatoriedade dos cadastros.



Mas o que passou foi um cadastro simples. As lans já não fazem esse tipo de registro?

Brandão – Somos favoráveis à feitura de cadastro, e até orientamos donos de lans a fazer o cadastro, por uma necessidade de conhecer o cliente, fazer promoção. É como uma locadora de vídeo, toda locadora faz cadastro. A obrigatoriedade do cadastro é que é o problema. Porque dessa forma as lans estão sujeitas a duas figuras jurídicas terríveis: a teoria do risco e a responsabilidade civil objetiva. A teoria do risco fala que os danos decorridos da ação natural do seu negócio são de responsabilidade sua. Por exemplo: você tem um negócio de telefone. Se o seu telefone causar um prejuízo a alguém, mesmo você não tendo nada a ver com a história, é um risco inerente ao seu negócio. E você se torna responsável. No ordenamento jurídico brasileiro, a pessoa que desenvolve o negócio tem responsabilidade, independente de culpa. Legislativamente falando, é um desastre. Porque aí vem aquela coisa: se eu sou responsável pelo acesso, eu me dou o direito de vigiar a navegação. Mas, se eu tenho de respeitar a privacidade de navegação das pessoas, como eu posso ser copartícipe do que elas estão fazendo? E essa é outra discussão preocupante.



A responsabilidade civil objetiva também coloca o dono de lan house como corresponsável por crimes cometidos por usuários. E o ônus da prova em contrário é dele. Ele só deixa de ser responsável se identificar o responsável. Mas veja um exemplo no mundo concreto, não digital. Alguém manda uma carta ofensiva e no remetente escreve nome falso, endereço falso. Não dá para responsabilizar os Correios pela incapacidade de identificar quem é o verdadeiro remetente. Da mesma forma, se alguém cometer uma ofensa de um orelhão, não dá pra responsabilizar a operadora de telefonia pela incapacidade de identificar quem fez a ligação. Portanto, não se deve criminalizar o meio pelo qual foi cometido o crime. E as incapacidades técnicas que qualquer um desses vetores tem, a lan house também tem. Aqui na minha lan, tecnicamente falando, eu tenho um IP para 20 máquinas. Posso dizer quantas e quais pessoas estavam logadas, em determinado dia e horário, mas não consigo dizer de qual das 20 estações partiu determinado e-mail.



O cadastro não seria uma forma de inibir as práticas criminosas?

Brandão – As estatísticas mostram que 98% dos crimes da internet são imateriais – 95% contra a honra (calúnia, injúria e difamação) e 3% contra o patrimônio (desvio de dinheiro, uso de cartão de crédito etc.). Se compararmos os estados que têm leis de obrigatoriedade de cadastro com os que não têm, não há diferença significativa no percentual de crimes. Além disso, dados do Cetic.Br 2009 apontaram que 63% dos crimes na internet partiram de acessos residenciais. Dos 31% de crimes não originados em residências, 36% foram praticados em lans houses. Resultado: apenas 11% dos incidentes de segurança e ilícitos de toda a internet brasileira aconteceram em lans. Então vem a pergunta: por ter um perfil de pretenso anonimato, a lan house é um lugar de crime? Os números dizem que não. Até porque ninguém olha fotos de pornografia infantil com gente passando do lado, nas costas. É o contrário: por ser um ambiente público, sem privacidade, a lan inibe práticas criminosas. E, mesmo que eu tenha um cadastro... não sou capaz de identificar uma nota de R$ 50 falsa, quanto mais uma identidade falsa! Então, o cadastro não deve ter essa função. Os prejuízos sociais em nome da proteção contra crimes digitais são muito grandes.



Como é que as lan houses podem garantir sua sustentabilidade?

Brandão – Estamos na expectativa de que seja liberada uma linha de financiamento do BNDES de R$ 1 bilhão, para lan houses e microprovedores. Esse crédito vai permitir uma operação mais sustentável porque você vai poder, por exemplo, trocar monitores CRT, que consomem 90 watts, por monitores LCD, que consomem 23 watts. Hoje, o banco não dá crédito para lan house. No Banco do Nordeste, tem microcrédito. Mas quando o gerente sabe que é lan house, ele nega o empréstimo. Então, sustentabilidade, para uma lan house, é redução de custos, é diversificação de modelo, com negócios não vinculados exclusivamente ao acesso. Como uma farmácia, que não vive de vender remédio, mas de vender cosméticos, perfumaria etc. A boa lan house é aquela onde, na hora de acesso igual a zero, o cara consegue ganhar dinheiro com ofertas paralelas. O que a ABCID passa para os proprietários é isso: faça business, gere fluxo, seja criativo. Isso não tem nada a ver com equipamentos de última geração. Tem a ver com baixo custo de energia, baixo custo fixo, variedade na receita. Esse é um negócio sustentável.

Fonte: http://www.arede.inf.br/inclusao/edicao-no69-maio2011/4208-entrevista
Fonte: http://www.abcid.org.br/casas-abertas-%E2%80%A8para-inclusao-digital-e-social

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